10 Setembro 2019
“O clericalismo deriva de quatro coisas: da nossa natureza decaída, das dinâmicas institucionais, da tradição corrompida e da formação no seminário.”
O comentário é do advogado e padre aposentado Peter Daly, da Arquidiocese de Washington, nos EUA. Após 31 anos de serviço paroquial, ele trabalha hoje com instituições de caridade católicas. O artigo foi publicado por National Catholic Reporter, 09-09-2019. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Reformar o sacerdócio significará reduzir os efeitos do clericalismo. O clericalismo é algo real, não um mito ou uma miragem. É um senso de elitismo e de superioridade entre o clero, que os separa e os coloca acima do resto das pessoas na Igreja. Ele afeta o modo como as pessoas clericais – clérigos e leigos – se comportam. Para enfrentar o clericalismo, a Igreja deve primeiro descobrir de onde ele vem. Depois, devemos descobrir como combatê-lo.
Eu acho que o clericalismo deriva de quatro coisas: da nossa natureza decaída, das dinâmicas institucionais, da tradição corrompida e da formação no seminário.
A nossa “natureza decaída” é um artigo da nossa fé. Através do pecado das primeiras pessoas, Adão e Eva ou quem quer que fossem, a nossa natureza foi corrompida pela “concupiscência”. Isso significa que temos uma tendência ou uma atração pelo pecado. Não se trata apenas de luxúria. O pecado fundamental, de acordo com a maioria dos teólogos, é o orgulho.
A nossa natureza decaída está inclinada a todos os sete pecados capitais: orgulho, ira, luxúria, inveja, gula, avareza e preguiça. O clericalismo está enraizado no pecado do orgulho, mas também envolve a luxúria, a inveja e a avareza.
Não vamos erradicar os efeitos do pecado original até o eschaton. Contudo, pela formação, pela graça e pela oração, podemos reduzir o nosso pecado. Em outras palavras, clérigos e leigos clericais precisam estar cientes de que essa atitude de superioridade e de elitismo não vem de Deus. Não é bom. Deve ser contido. Isso requer disciplina, assim como viver uma vida casta exige disciplina.
Sempre haverá pessoas ambiciosas no sacerdócio, que veem a vida clerical como uma carreira poderosa, e não como um chamado ao serviço.
Sempre haverá pessoas avarentas no sacerdócio, que usam a riqueza e os recursos da Igreja para o seu próprio prazer, luxo e enriquecimento.
Sempre haverá pessoas lascivas no sacerdócio, que usam sua posição de poder e autoridade para se gratificar sexualmente.
Sempre haverá pessoas invejosas no sacerdócio. A inveja é “a tristeza pelo sucesso alheio”. Os padres invejosos veem o sacerdócio como uma competição para conquistar a “paróquia rica”, o “cargo na Cúria” ou a nomeação episcopal.
O primeiro passo para combater o clericalismo que nasce a partir da nossa natureza decaída é falar a respeito. Enfrentá-lo na formação no seminário, nos retiros dos padres, nos congressos do clero, nas cartas dos bispos ao seu rebanho e nos documentos papais. Se não falarmos sobre ele, não poderemos tratar o problema.
A segunda causa do clericalismo são as “dinâmicas institucionais”. Podemos fazer mais do que a nossa natureza decaída. As dinâmicas institucionais são os modos pelos quais qualquer grande organização funciona. Fazem parte da vida.
As pessoas querem passar o tempo “face a face” com o chefe, porque é assim que são conhecidas e promovidas. As pessoas querem empregos na sede, porque esses empregos têm poder e lhes dão alavancagem. As pessoas querem controlar as finanças, as decisões, os planos, o cronograma de promoção, porque podem avançar nessa direção.
Essas dinâmicas são praticamente as mesmas quer seja nas Forças Armadas, nas burocracias corporativas, na academia ou na Igreja. Qualquer grande burocracia terá pessoas que são “carreiristas”, “puxa-sacos”, “lambe-botas” e “capachos”. Mais uma vez, a natureza humana.
Mas há algo que podemos fazer em relação às dinâmicas institucionais. Podemos mudar os critérios para promover as pessoas. Podemos reduzir as sinecuras que criam a elite. Podemos ser aquilo que o papa Francisco disse que quer, uma “Igreja pobre para os pobres”.
Por exemplo, poderíamos estabelecer como requisito absoluto que ninguém seja consagrado bispo sem ter pelo menos uma década de experiência paroquial comum como padre.
Eu tive quatro arcebispos. Todos eles estavam na “pista rápida”. O cardeal James Hickey havia passado apenas nove meses em uma paróquia antes de se tornar secretário do bispo, depois reitor do seminário e depois bispo. Ele costumava se referir a esses poucos meses na paróquia como o seu quadro de referência para a vida sacerdotal.
O cardeal Theodore McCarrick não atuou um único dia como pároco comum. Ele começou a vida sacerdotal como pró-reitor acadêmico da Universidade Católica da América. Depois seguiu em frente e subiu para o cargo de reitor de uma universidade em Porto Rico, secretário do cardeal em Nova York, bispo auxiliar e em seguida bispo.
Mais recentemente, o cardeal Donald Wuerl atuou apenas alguns meses em uma paróquia antes de ser levado para a Cúria local e depois para Roma para ser secretário de um cardeal, John Wright. Wuerl nunca mais esteve em uma paróquia. Ele seguiu em frente como bispo auxiliar, bispo e arcebispo.
Não se deveria nomear ninguém como bispo sem ter uma experiência substancial nas trincheiras como pároco comum. Na Marinha, nenhum oficial seria nomeado almirante se não tivesse pelo menos alguma “experiência de linha”, fazendo o trabalho básico de um oficial. É chocante ver como poucos dos nossos bispos realmente têm experiência na vida paroquial.
A experiência paroquial faz a diferença. Ela torna as pessoas mais empáticas com as lutas do fiel comum. Ela faz com que a Igreja e as suas muitas “regras” se defrontem com a vida real e as suas muitas permutações. Ela constrói compaixão, flexibilidade, compreensão e até mesmo um senso de humildade. Eu sempre digo que, na paróquia, “todos, inclusive o pároco, devem limpar os banheiros”.
Não se pode esperar que os padres que acham que as suas “necessidades” não cheiram mal entendam como todos os outros lidam com a condição humana.
Todo bispo deveria ter pelo menos uma década de serviço paroquial. Ponto final. Isso poderia eliminar a metade dos bispos da Igreja. Que bom. Eles não são aqueles que queremos, de todos os modos.
Veja-se o caso do cardeal Joseph Ratzinger. Para ele, o sacerdócio é uma jornada acadêmica. Mesmo para o cardeal Jorge Bergoglio, foi apenas quando ele saiu da “pista rápida” dos jesuítas e se tornou um padre comum e bispo auxiliar que ele desenvolveu o coração de um pastor.
As dinâmicas institucionais tendem a promover os “garotos brilhantes” e aqueles que já passaram muito tempo “face a face” com o chefe, o bispo. É por isso que tantos secretários e vigários-gerais dos bispos se tornam bispos.
Muito poucos “São Joões Marias Vianney” ou “São Vicentes de Paulo” se tornam bispos. Por quê? Porque procuramos mais a lealdade institucional do que a santidade, compaixão, justiça ou um senso de empatia pelos pobres. A mentalidade clerical escolhe bispos porque eles são bons administradores, angariadores de fundos, “agradadores”.
Não precisa ser assim. Podemos mudar isso modificando os critérios para definir quem será promovido. Podemos ajustar isso para enfrentar as dinâmicas institucionais.
Há muito mais a dizer sobre as dinâmicas institucionais. Mas vocês entenderam. Mudemos as dinâmicas e mudaremos o resultado.
Teses inteiras foram escritas sobre a nossa tradição corrompida e os problemas da formação no seminário. Essas duas questões terão que esperar pela próxima coluna. Fiquem ligados.
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Enfrentando as causas do clericalismo: o pecado original e as dinâmicas institucionais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU